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domingo, 6 de julho de 2014

O imperativo categórico e os incentivos ao trabalho: a bem de um País melhor

Ontem foi dia de compras. Fui sozinho. Enquanto deambulava absorto nos meus próprios pensamentos e problemas, pensando como de costume em tudo e no seu contrário - em bom rigor penso em tanto coisa ao mesmo tempo que duvido que reflicta em alguma delas -, dei já por mim na caixa. Não trazia muita coisa, só depois de lá estar dentro me lembrei que afinal não me faltava nada de especial. Acontece, e a mim acontece-me frequentemente. Quando vou de carro para algum lado não é também invulgar passar uma e outra saída, uma e outra rotunda, até me aperceber que afinal não era para ali que queria ir. Enfim.

Indo ao que importa, estava na caixa, e fez-se luz. Para ser franco, e considerando que ainda  estou a processar o que se passou, apenas posso afirmar com razoável grau de certeza que creio ter-se feito luz. À minha frente estava um casal, com uma criança. Devia ter uns três anos. Talvez tivesse quatro. Para falar verdade, não estava bem vestida. Deixando-me de rodeios que só prejudicam a objectividade dos factos que aqui quero trazer à colação - devo dizer que essa coisa de dizer o contrário do que se pensa e/ou mascarar o nosso ponto de vista apenas para passar a imagem de que somos seres humanos fantásticos e piedosos, tem impedido sucessivos contributos de pessoas inteligentes que, receando o feedback dos seus reparos, calam-se e, concordando com Condorcet quando este afirmava que «Toda a sociedade que não é esclarecida por filósofos, é enganada por charlatães», então poderemos ter um problema sério em mãos -; interessa pouco, para efeito da presente análise, se aquela criança vem de uma família desestruturada, de pais com parcos recursos ou se simplesmente não estava bem vestida. Não é isso que importa aqui. Esse facto apenas fez despoletar em mim um turbilhão de reflexões que descambaram nesta verborreia de argumentos mais ou menos lógicos, neste diagnóstico mais ou menos útil.

  Como vivemos numa sociedade semi-colectivizada, todas as acções tomadas pelos cidadãos na sua vida particular e/ou pública afectam duma maneira ou de outra a dos seus pares. O facto duma pessoa fumar, exercendo o seu inalienável e incontestável direito a fazê-lo, acarreta um custo à sociedade diferente daquele imposto por um seu concidadão não fumador. Porquê? Porque ao fazê-lo aumenta em muito o seu risco de contracção de diversos tipos de cancro associados ao hábito tabágico que serão suportados pelo Serviço Nacional de Saúde - escrevo-o com letras maiúsculas não por acaso pois, pese embora seja liberal e ache que esse serviço podia ser prestado de forma mais eficiente com contributos de privados que não influenciassem a seu proveito esses contratos de concessão; continuo a achar que é o instrumento de coesão social por excelência deste país -; custo esses que em principio não seria necessário suportar se aquela pessoa não fumasse. O problema é que este ponto de vista é extensível a praticamente todas as áreas da acção humana, como ter um acidente quando se ruma a férias, quando se fica paraplégico ao saltar-se salta de pára-quedas em lazer ou até partir uma perna quando se joga à bola no jardim. E reparem que todos estes exemplos resultam de acções aparentemente não produtivas e voluntariamente levadas a cabo por quem as prossegue, sabendo sempre que elas comportam um determinado grau de risco. Como todas as acções. Resulta claro para mim que ninguém quer ter cancro, ficar paralisado ou sequer partir uma perna. Mas todos estes problemas tenderão a ser solucionados com dinheiro dos impostos dos contribuintes. De todos os contribuintes. Não me admirava que em face disto, algum governante viesse um destes dias a terreiro dizer que apenas as maleitas sofridas no trabalho ou em função deste ou de uma qualquer actividade produtiva fossem graciosamente suportadas pelo SNS. É por estas e por outras que é um risco o poder decisório estar tão concentrado num punhado tão pequeno de decisores governativos. Quem vai de férias, quem salta de pára-quedas ou quem joga à bola faça um seguro.Estes exemplos servem apenas para nos lembrarmos que todas as nossas acções, que frequentemente consideramos neutras para os demais, na realidade podem passar um custo ao todo social. Virtualmente tudo o que façamos influência não só a sociedade semi-colectivizada em que vivemos se universalmente considerada, mas também qualquer cidadão/contribuinte, se individualmente apreciado.

Recentrando a questão na criança, eu quero falar das acções, mas quero sobretudo das omissões.

Vamos agora supor que aquela criança estava de facto mal vestida. Vamos supor que os seus pais fazem de tudo para não lhe deixar faltar nada. Mas deixam. Vamos continuar supondo que lhe faltarão os recursos para que ela se dedique apenas ao estudo, como é suposto acontecer. Vamos presumir que aquele ser inocente, aquele livro em branco cujo olhar enternece até o mais duro dos duros, não tem condições para vingar.

Eu diria que neste caso a omissão dos pais pode ser fatal. Mas o problema é de todos nós. Se a vida nesta sociedade se encontra semi-colectivizada, se as acções ou omissões de uns afectam de uma maneira ou de outra os demais, diria é nossa obrigação ética darmos o melhor de nós em tudo o que fazemos. Mesmo que não gostemos da forma como funciona este modelo social, mesmo que gostássemos de viver num tipo de organização comunitária em que as consequências do comportamento de alguns afectam os demais, a verdade é que é nela que vivemos. E já que vivemos nela, não podemos deixar que essa criança cresça sem as condições que lhe permitam ter um destino mais promissor.

Num tempo que poderíamos cunhar de pós-relativista - se lerem nos jornais, nas revistas na internet, tudo é relativo, todos os preceitos éticos, todas as âncoras morais são relativas, já nada é assumido como sendo intocável ou universalmente aceite -, importa o que fazemos, e importa como o fazemos. E não, não é com subsidio-dependência que se resolve o problema, com caridadezinha barata que serve apenas para clarear a consciência de alguns ou a imagem pública de outros. O que essa criança precisa é que todos os que com ela lidam com ela dêem o seu melhor, começando pela educadora de infância ao não a deixar de lado em detrimento dos filhos dos ilustres da terra, necessita que a professora primária puxe por ela e não a dê como uma caso difícil no qual não valha a pena investir o seu tempo. O que essa criança requer é apoio da escola, na forma de explicações, quando se perceber que os pais de revelam incapazes de pagar por explicadores privados. O que essa criança exige é que olhem para ela, que acreditem nela, que a guiem, que a orientem se a vida não logrou orientá-la, que a  aconselhem se o destino não lhe legou o melhor dos ambientes para que essas capacidades sejam desenvolvidas.

Uma vez mais, digo não. Não é com superestruturas estatais, povoadas de profissionais desnecessários que vão gerando um burocracia sem fim para irem tentando justificar a sua própria existência. Não, não é assim que se resolvem os problemas. É olhando para trás, é olhar Kant e o seu imperativo categórico. Se agirmos de tal forma que queiramos que o resultado das nossa acções se transforme em lei universal, então poderemos exigir isso aos demais. E se este País funcionar assim, então essa criança terá seguramente um futuro melhor, independentemente do berço que a viu nascer. Igualdade não representa para mim igual ponto de chegada, mas condições iguais à partida -sobre isto falarei mais tarde -. É por isso que devemos lutar. 

E não é só na escola, só no sector público e/ou cooperativo, que esta forma de estar e de ser se deve manifestar. No sector privado também. Mas se este último pode ainda dar passos muito interessantes, a verdade é que a concorrência do mercado faz já com que este fosse desenhando um conjunto de incentivos que, podendo ser melhorados, fazem já parte do funcionamento empresarial. A empresa que não respeitar esta «regra» não escrita, perde o seu capital humano para os concorrentes e sujeita-se definhar e a passar de crise em crise até à crise final. É, portanto, no sector público que deve ser repensado um tipo de estrutura que promova o mérito dos que empreendem em detrimento da manutenção do status quo dos que pretendem deixar tudo na mesma, dos que não percebem que o mundo mudou e que é imperativo mudar com ele. É fundamental que o cidadão seja bem servido e que essa criança não veja melhoradas as suas perspectivas de futuro porque uns quantos preferem manter tudo como está, mesmo que saibam o custo que isso representa.

Eu ontem não fui às compras e não vi criança nenhuma. Podia ter ido e tê-la visto, mas não fui e não a vi. Ah, aquela criança representa qualquer um de nós. O profissional zeloso e esforçado aqui aventado neste pequeno contributo é o que eu entendo que todos nós devemos procurar representar. E exigir aos outros que sejam.

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