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quarta-feira, 9 de julho de 2014

Capitalismo à Portuguesa: das origens à actualidade

O mais recente post de André Abrantes Amaral, no Insurgente, é extremamente interessante porque traz de novo à colação um assunto que, quer pela sua seriedade, quer pela sua importância, deveria merecer da nossa parte a nossa melhor atenção. Falo do modelo económico identificável em Portugal. Como disse Nixon, três anos depois da massa monetária em circulação deixar de estar lastreada num metal precioso e poder ser a todo o tempo convertida, e naturalmente trocada, por uma determinada quantidade de ouro – o chamado padrão-ouro -;  «somos todos Keyneseanos».  Todos não, diria eu, porque só são os que podem.

Vamos por partes. A Monarquia Constitucional herdada das revolução liberal que abanou o País já fortemente deprimido pela fuga - ou manutenção do governo no exílio, como preferirem -  da Família Real, e ulterior vazio de poder, pelas guerras napoleónicas e pela longa e penosa regência Inglesa, permitiu que fossem criados alguns conglomerados comerciais/industriais frequentemente ligados à aristocracia, ou por ela protegidos, ou que fossem beneficiadas certas famílias que haveriam de construir impérios herdados pelas sucessivas gerações das mesmas, algumas das quais perduram com grande influência nos sectores do poder até aos dias de hoje. Até aí nada contra, acontece em todo o lado, e faz parte do processo normal sempre que uma economia inicia um processo de industrialização que, no nosso caso, foi já tardio. O livre mercado e a competição entre produtores pelo «favor» dos clientes haveria, pelo caminho, de eliminar esses privilégios e equilibrar o nível competitivo. Em teoria, pois a história foi outra, como de resto sabemos.  Pelo caminho fomo-nos ainda deixando enganar por teorias económicas vendidas por estrangeiros que, desde sempre, conseguiram enfeitar postulados de consistência duvidosa e enganar um povo que tem um desdém pavoroso pelo que produz e uma paixão alucinante pelo que vem de fora. A este respeito a teoria da vantagem comparativa de David Ricardo era um disparate pegado, pois se Portugal era mais eficiente na produção de vinhos e de tecidos na Inglaterra, porque não produzíamos tecidos e vinhos? A concórdia deve existir entre empresas de países diferentes cujos Estados controlam o que se pode e não se pode produzir e em que quantidades? Entre empresas que deveriam competir? E nós assinámos aquilo? O livre mercado só se deveria aplicar quando dava jeito à Inglaterra? A Inglaterra, à conta de vender banha da cobra a estrangeiros que adoravam a aura que reluzia naqueles distintos e impecavelmente engomados gentleman's ingleses, conseguiu criar o maior império da história. E dar mais uma facada no nosso, embora aí a culpa tenha quase sempre sido nossa. Adiante.

Da I República nem se pode dizer muito. Quis ir tão longe e tão depressa em tão pouco tempo que acabou por não ir a lado nenhum. A imprudência e fraqueza dos seus governos, quando aliada à falta de experiência governativa e à dificuldade de se ver reconhecida na cena internacional, obrigou-a a um esforço financeiro gigantesco para conseguir enviar para os campos de batalha da Flandres o Corpo Expedicionário Português, naquilo que ficaria conhecido como o «Milagre de Tancos». Mal o menos: mantivemos o Império Colonial, embora ache que a manutenção dele nos terá impedido de darmos o salto que deveríamos ter dado na produção de bens e de serviços de valor acrescentado, mantendo um sistema produtivo bastante primitivo com capital fixo também ele arcaico.

À desgraça da I República, com governos que duravam quinze dias, seguiu-se outra desgraça: a da II República. Para além de continuar a ser mantido um modelo produtivo relativamente fechado que girava em torno do comércio de bens e de serviços negociados entre o Portugal Metropolitano e as então Províncias Ultramarinas, como já vimos com pouca intensidade de capital e alta concentração do factor trabalho, facto que desequilibrava completamente os níveis de eficiência que devem ser procurados alcançar entre todos os factores de produção; aos Portugueses não foi dada a oportunidade de se instruírem em massa. Nem a oportunidade de, ombreando com os melhores num mercado aberto à escolha levada a cabo pelo Darwinismo de Mercado, fazermos a diferença e alterarmos o nosso tecido produtivo, não apenas através do investimento (re)produtivo, necessariamente alocado a capital fixo, mas também circulante, uma vez que apenas a diversificação das fontes de aquisição de matérias-primas, tida como condição essencial para concretizar essa modificação, só seria possível se o Império não fosse a prioridade absoluta, o que era dificil de alcançar num tempo - guerra colonial - em que o País era votado ao isolamento e ao ostracismo internacionais.

Os principais conglomerados industriais e comerciais da altura beneficiavam de uma certa teia proteccionista do regime, e o regime contava com eles para não atacarem o poder instalado. O medo da ameaça comunista era a cola que juntava uma já de si provável fusão simbiótica entre um regime que precisava de aliados que o cimentassem e um tecido empresarial pouco habituado a concorrer no exterior e a quem interessava mais a calmaria ditatorial que a competição pelo favor dos clientes. Lembremo-nos da proibição do uso de isqueiros com o argumento de proteger a indústria fosforeira nacional - ainda bem que não se lembraram de proibir viaturas com motores de explosão a favor dos criadores de burros de Trás-os-montes ou de cavalos do Ribatejo -. Apenas alguns privilegiados e alguns próximos dos homens do regime, dentre aquela que pode ser chamada de aristocracia republicana, tinham aspirações a frequentar a academia. É verdade que havia uns apadrinhamentos e algumas bolsas de mérito para estudantes pobres, mas essa era a excepção, num País onde a manutenção de elevados de iliteracia eram a regra que permitia servir simultaneamente dois propósitos: a manutenção de um desejo de status quo no seio conjunto de pessoas sem massa crítica e capacidade de discernimento liberal e a preservação de um modelo social baseado no «Deus, Pátria e Família» que nos fez perder o comboio da globalização. Se juntarmos a isto o facto de os principais investimentos serem feitos no Ultramar e não na Metrópole e de gastarmos 25 % do PIB em funções de Defesa, então podemos ter uma ideia do quadro pintado naquela altura em que nos devíamos ter preparado para o embate asiático. Mas, como de costume, não o previmos e não preparámos. Ainda que o tivéssemos previsto, também não nos teríamos preparado como não nos preparámos com o choque a leste depois da queda do muro de Berlim. É assim a vida. Somo bons no desenrasque, mas péssimos no planeamento.

A III República começou bem. Pouco depois da revolução, começa um complicado jogo de esquerdização da vida política que tem como ponto alto a nacionalização de grande parte do sector produtivo com consequências gravíssimas cuja conta ainda hoje nos é servida. Para além de termos perdido a capacidade produtiva efectiva em vários sectores de forma imediata, anos de greves, de paralisações e gestão de trabalhadores haveriam de desmontar sectores-chaves nos quais, do dia para a noite, deixámos de ser competitivos. Para nunca mais o sermos. A indústria de construção naval, química e metalomecânica são alguns exemplos. Mas, mais do que isso, porque como a maioria de nós sabe, a economia vive sobretudo de expectativas - expectativa que a seguir ao investimento o caminho natural é contar com a sua rentabilização, materializada naturalmente na obtenção de lucros líquidos -, e quando se dá a ideia ao estrangeiro que todo o investimento aplicado em Portugal corria o risco de se nacionalizado, das suas fábricas se verem paralisadas pela intervenção de sectores radicais, de a Administração ter dificuldade em normalizar a vida política e de a legislação estar muito pouco
preocupada com a segurança jurídica do investimento empregado; então é praticamente impossível atrair o investimento estrangeiro que necessitávamos tanto para podermos reerguer-nos. Lembremo-nos que no entretanto 800 000 Portugueses haviam sido repatriados nessa mesma altura e a situação do País era tão aflitiva que tivemos de pedir assistência internacional em 1977 e 1983. Mais, a situação a seguir ao 25 de Abril era de tal maneira crítica que Kissinger, Secretário de Estado de Nixon e Gerald Ford, dava já Portugal como perdido para os comunistas, esperando que o efeito do coup funcionasse como uma vacina para as transições de Espanha e da Grécia.

É só depois das negociações levadas a cabo para a entrada na União Europeia em 1986 e com a revisão constitucional  de 1982, que as privatizações se tornam uma imperiosa necessidade. Como o investimento externo não fluía - conseguem imaginar porquê, hum?!? -, foi-se ao Brasil tentar vender aos legítimos proprietários o que lhe havia sido expropriado aquando da revolução. Falo das famílias Mello, Champalimaud e Espírito Santo, culpados do crime único de gerarem riqueza e prosperidade. Porque muitos deles não tinham capital suficiente para comprarem o que era seu, endividaram-se grandemente para o conseguirem - talvez essa engenharia financeira, quando agregada a alguns disparates gestionários entretanto cometidos, explique por exemplo o caos das Holdings da Família Espírito Santo -, formando muitas vezes novos aglomerados em sectores frequentemente diferentes daqueles nos quais originalmente tinham estado envolvidos, o que dá prova da sua tenacidade e da sua capacidade empreendedora. Apesar de tudo, se não se tivessem endividado tanto, talvez fossem empresas mais solventes e mais capazes de competirem no exterior e de se internacionalizarem. E este é o ponto-chave. O Estado, provavelmente por um complexo moral, provavelmente por interesses e ligação entre a política e a economia -estas por provar, atenção - que não interessam para o caso, foi sempre muito compreensivo e permissivo com algumas das suas reivindicações, o que não ajudou o Estado - por razões evidentes - nem as empresas, que perderam parte do incentivo para se modernizarem e se reestruturarem sempre que as necessidades do mercado, i.e., dos consumidores, assim o determinassem. Isto explica ou pode explicar que o retorno do investimento público, que em muitos casos foi apenas «alavancado» pela banca, - quer isto dizer que a banca apenas financiou uma pequena parte desses investimentos - tenha feito recair sobre esta última uma parte desproporcional dos lucros que, ainda por cima, resultaram frequentemente de contratos com rendas certas e permanentes onde o risco do investimento estava todo do lado do Estado, cujo melhor sinónimo que encontro é «sobre os ombros do contribuinte», e nenhum do lado da banca ou das empresas por si participadas ou por ela financiadas. As parcerias público-privadas são uma óptima solução em Países onde os contratos são feitos por duas partes bem informadas, e foram diabolizadas como sendo um ataque do «capital» contra o pobre e desafortunado Estado. Não. Aquilo que é desigual é a qualidade dos advogados e juristas presentes em cada lado da barricada ou, para ser mais preciso, dos incentivos envolvidos na transacção. Não se pode querer os melhores pagar-lhes como se de regulares de tratassem. E para quem tem dúvidas dos méritos de uma PPP bem negociada, repito, BEM NEGOCIADA, vejam o caso de Sandy Springs, em Atlanta, Georgia, EUA. A juntar a isto tudo, e note-se que creio ter já tentado explicar o porquê deste Capitalismo à Portuguesa viver invariavelmente à sombra do Estado - que fazem os bancos Portugueses quando se unem para comprar dívida pública Portuguesa, com risco de incumprimento apesar de tudo elevado, senão para fazer um favor ao Estado que terá de ser pago, provavelmente, com PPP's com condições favoráveis? -, criou-se o risco moral, e já agora compreensível, de todas as empresas se julgarem no direito de recorrerem ao Estado sempre que a coisa se anuncia poder vir a correr mal. Até as multinacionais que se cá instalam não vêm sem ir ao Saldanha contratar a melhor firma de Advogados para assinar com o Estado Português um complexíssimo contrato de fixação, no qual uma vez mais os incentivos para a boa conclusão do processo radicam nestes últimos e nunca nos servidores do Estado, contrato esse no qual os impostos dos Portugueses financiam a competitividade dessas empresas no estrangeiro, através de uma miríade de isenções fiscais e de benefícios. Logo que os benefícios desaparecem ou terminam, a empresa arruma as malas e vai à vida.

Posto isto, este capitalismo à Portuguesa é de facto muito sui generis. Mas, uma vez identificado o problema e enunciadas as causas, não vejo razão para não se caminhar no caminho de os procurar resolver.

Contudo, e depois de visto o que já vimos, desejo-o mais do que o espero.

2 comentários:

  1. Alexandre,

    O episódio que cita no início - decisão de Nixon em 1971 - é uma resposta a um default. O que se assistiu nesse momento foi uma reestruturação de dívida. Incapazes de cumprir as regras (que eles mesmos impuseram) de trocar dólares por ouro, os americanos fecharam a "janela de ouro". Unilateralmente.
    No presente, é interessante verificar que os alemães (que pediram em Janeiro de 2013) o repatriamento de parte do ouro que têm em NIorque (300tn) tenham recebido apenas 5t até Dezembro último. E os americanos - unilateralmente - estabeleceram uma janela de sete anos (!) para proceder a esse repatriamento. Mais um default? Mais uma falência? Como é que se evita? Adia-se a entrega - já feito; A seguir faz-se com que a Alemanha deixe de querer o seu ouro de volta - já feito.
    E pronto, assim vai a qualidade do nosso sistema financeiro mundial. Até quando?
    Saudações,
    LV

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    1. Caro LV,

      É de facto verdade tudo o que aponta. Qualquer reestruturação unilateral implica riscos, mas não para quem é o peso pesado do sistema monetário internacional, não para aqueles que detêm a moeda por excelência de reserva e de trocas comerciais.

      Quando ao caso da Alemanha, também estava ao corrente disso, embora não soubesse que tão pouco ouro tivesse sido repatriado até agora. Depois de injecção de liquidez na economia desde o 11 de Setembro e desde a falência do Lehman Brothers em 2007, a massa monetária cresceu imensamente e só não provocou inflação porque foi e tem sido impedida a sua circulação, ficando nos bancos a servir de almofada e dar a falsa sensação que tudo vai bem no sistema monetário do Tio Sam.

      Vamos esperar pelos próximos capítulos desta saga.

      Com os mais cordiais cumprimentos

      Alexandre Portugal

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