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quarta-feira, 16 de julho de 2014

Ce qu'on voit et ce qu'on ne voit pas - Bastiat e a minha visão do Liberalismo Clássico

Na sua intelectualidade refinada, Frédéric Bastiat resumiu numa expressão, de resto impecavelmente condensada, uma quantidade de informação tão densa e de tão grande relevo que se torna difícil discorrer sobre ela sem que omitamos pontos que eventuais leitores considerem falta grave ou cuja deslembrança não possa configurar, para si, um verdadeiro crime de lesa majestade. De idêntico modo, será também fácil atribuir-lhe significados que o autor não terá assumido aquando da sua formulação, razão pela qual entendo que a realização deste simulacro reflectivo deverá assentar sobretudo no meu próprio ponto de vista. Evita-se assim não só a desfocagem do original, ou o que quer que uns tantos pretensos herdeiros morais da sua tradição liberal entendam por «original», esses ditos verdadeiros representantes de uma estranha «nomenklatura» de liberais que gostam mais de arrebanhar do que aplicar os princípios de liberdade que tão prontamente defendem; mas também, ou sobretudo, expressar o meu próprio ponto de vista sobre a temática sobre a qual me proponho discorrer.


Assumindo que a assumpção desse risco, dessa forte possibilidade de me ver ver incompreendido faz parte da vida, creio ser importante que liguemos a ficha que nos alimenta à tomada da razão que, pelo que vejo, ou tem estado desligada ou curto-circuitou. A este respeito, devo confessar que foi o uso desse instrumento que o racionalismo continental miscigenado com o empirismo insular sintetizado pela majestático criticismo Kantiniano nos legou, que nos permitiu lançar as bases para o período maior expansão comercial e industrial que a historiografia até então havia registado. Foi com o auxílio da razão, da lógica, da coerência epistemológica, foi através da negação da lenda, do dogma e dos postulados inquestionáveis impostos pela minoria dominante à maioria ductilizada e submissa, que a liberdade se impôs e que o Liberalismo vingou. Foi o século da luzes, a que seguiu o século das revoluções Liberais. Foi acabando com o Lordismo feudal com que poucos agrilhoavam muitos, foi extinguindo direitos hereditários que a sociedade não podia já tolerar e contra os quais se insurgiu, foi eliminando proteccionismos vários com que alguns mantinham o seu stautus quo de privilégio à custa da manutenção dos demais na ignorância e na miséria, que a sociedade avançou, que a liberdade ousou vingar. O sucesso passou a medir-se cada vez menos pelo berço e mais pela perseverança, pelo mérito, pelo valor do agente e pela força das suas ideias no mercado. Os que não nasciam entre a aristocracia e que, contra todas as probabilidades, venciam, não admitiam que lhes não fosse reservada representação política consistente com a sua importância. Foram estes, e não os outros, que acumularam o capital necessário para das inicio às revoluções industriais. Foram estes que permitiram a milhões sair do estado de pobreza absoluta em que se encontravam. Foram este que criaram excedentes sistematicamente reinvestidos na actividade produtiva reprodutiva - sim, há actividade produtiva não reprodutiva - que fizeram com que mais pessoas vissem melhorada a sua vida e a dos seus. Foram estes e não o Estado, foram estes e não decretos, foram estes e não um conjunto de palavras bonitas, mas vazias, porque não lastreadas em qualquer substracto económico validável, que moldaram o mundo em que vivemos. Em toda a história nunca um ideário, nunca um corpo filosófico-político não coordenado, não combinado, não superintendido, transformou de forma tão profunda, tão demarcada, o futuro dos povos e das nações. Nunca um movimento desligado e não comandado mudou tão indelevelmente a sociedade como o Liberalismo. E fê-lo aumentando de forma nunca antes vista a qualidade vida  dos cidadãos, fê-lo abrindo barreiras até então intransponíveis para os que não tinham voz ou que não ousavam usá-la, por medo ou por temor. 

É isto o Liberalismo: colocar no centro o indivíduo, o homem, com os seus defeitos e com as suas virtudes, um ser livre, não comandado, não ordenado, que age com base nos seus interesses, sim, há que assumi-lo. Quem tem isso de mal?

O grande legado do Liberalismo, o  toque de midas, o seu maior insight, foi ter percebido que o mercado induz no indivíduo a percepção que é do seu interesse cooperar com os seus pares, ainda que o agente, por outras quaisquer circunstâncias, o não quisesse fazer. O primeiro grande erro do mundo contemporâneo foi ter-se espalhado a virulenta percepção, mesmo de entre as democracias liberais, que há quem saiba o que é melhor para nós, que há outros que têm a responsabilidade de - vejam, outros carregam por nós a responsabilidade! - se preocupam por nós e, em última instância, que há alguém que carrega o sempre pesado fardo de decidir o nosso destino individual e colectivo. O segundo grande erro é gostarmos disso. O segundo grande erro foi aceitarmos que decidam a nossa vida sem quase termos força para nos opormos. O terceiro foi termo-nos habituado, e vivermos bem com isso.

Quando nos perguntamos porque temos hoje crises globais, quando nos questionamos porque têm as democracias ocidentais os gravíssimos problemas de endividamento público e externo, de sustentabilidade das finanças públicas, de pagamento de pensões, de demografia ou de competitividade para com os mercados emergentes, temos que nos lembrar que a economia é tão feita de ciclos de crescimento e de retracção como a bolsa se compõe de períodos bear e bull market. Contudo, quando o processo de tomada de decisões se encontrava atomizado, quando as deliberações eram tomadas de forma desconcentrada e descentralizada pelos agente económicos no mercado, qualquer crise resultava na obrigação de reestruturação da empresa, adaptando-a à novas condições em que o mercado passava a operar, ou na sua falência. Raramente estes acontecimentos tinham consequências sistémicas. Por cada empresa que caía, duas se levantavam: o mercado resolvia rapidamente as suas ineficiências e recuperava rapidamente as suas perdas. E, de repente, como nos disse Jean Guéhenno, o equilíbrio rompeu-se. Com a dispersão metástica por entre todas as áreas da sociedade civil de políticas públicas frequentemente tanto invasivas e desajustadas quanto deformadas e extemporâneas, e com o colectivização e internalização de decisões cuja assumpção de risco passou dos agentes económicos que operavam no mercado directamente para o controlo Estatal; tudo mudou. As cíclicas crises cujo impacto no pretérito o mercado aguentava e da qual rapidamente recuperava, tornam-se hoje, porque o processo de tomada de decisões se viu concentrado e burocratizado, fenómenos passíveis de fazer ruir sistemas inteiros, sistemas esses que foram sendo construídos em cima de palavras bonitas, de promessas vãs que o dinheiro que entretanto não foi gerado pelo anémico crescimento económico medido, não puderam nem podem pagar. E os cidadãos acreditaram no que lhes contaram. E os cidadãos não querem acreditar que o que lhe contaram era incumprível, embora o saibam. Vivemos ainda em negação, pelo que teremos que passar pela raiva, pela negociação e pela depressão antes de chegarmos à quinta de cinco fases do luto que é a aceitação. Temos pela frente um grande caminho. 

Está na altura de falarmos verdade. Estaria na altura de devolver aos cidadãos a liberdade entretanto perdida. Estaria na altura de retirar o colete de forças dos que têm vontade de avançar e se vêem presos pelos que se querem manter imóveis. Digo estaria porque várias gerações viveram já numa sociedade semi-colectivizada que deixou marcas profundas na nossa memória colectiva, uma colectividade em que as consequências dos nosso actos, se e quando individualmente considerados, são frequentemente dispersas pela comunidade em geral. Este histórico marca desde então fortemente a nossa relação com a liberdade, até porque ela pressupõe responsabilidade. 

O grande desafio do Liberalismo contemporâneo é pois fazer a apologia da liberdade, fazendo-nos crer, como nos dizia Goethe, que «ninguém é mais escravo do que aquele que se julga livre sem o ser». Convencer alguém a deixar de ser esse escravo que se submete, que oferece a sua liberdade em troca de uma pretensa protecção contra a as adversidades da vida, ainda para mais num sistema providencial que sabemos estar perto do colapso, mas que ninguém se atreve a propor alterá-lo; é oferecer-lhe um lugar numa fusta com uma vela e com um leme que o pode levar onde quiser. Basta aprender a pilotá-la. Basta que queira aprender a pilotá-la. Basta que não queira ser mais pilotado.

4 comentários:

  1. Caro Alexandre, descobri hoje o seu blog e já li todos os seus posts. Alguns terei de "mastigar" de novo, não porque estejam mal escritos (muito pelo contrário) mas porque me fizeram pensar..

    O meu interesse por filosofia politica e económica é muito recente, mas o pensamento liberal-libertário é algo que quero "mergulhar" mais a fundo. Certamente que este blog me ajudará nesta missão! Continuação de bons posts, da minha parte terá um leitor assíduo.

    Melhores cumprimentos

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  2. Caro CsA,

    Antes de mais obrigado pelas suas palavras. Espero poder contribuir com o meu modestíssimo blog para que o seu interesse sobre estas matérias se expanda e lhe permita também a si trazer mais assuntos à colação. Devo dizer que o meu próprio interesse por estas matérias é também ele bastante recente, e tenho devotado o meu tempo que tnho disponível para mergulhar neste mar imenso que é a filosofia e economia políticas.

    Bem haja.

    Alexandre Portugal

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  3. Caro Alexandre, gostei do artigo, do blog e da linha de pensamento subjacente. Fazem falta mentes que pensem e vivam Liberdade, por oposição à pseudo-liberdade de Abril.Não tão abertamente, mas os mesmos princípios - entre a anarquia-capitalista e o estado-mínimo - estiveram subjacentes aos escritos, suspensos desde há mais de um ano atrás, do Antologia de Ideias. Mas este seu blog poderá ter reativado o bichinho - porque confesso que andava farto de "bater no ceguinho". Mas talvez o ceguinho seja tudo menos cego e mereça mais umas porradas! ;-) Se quiser passear-se por lá, à vontade (http://antologiadeideias.wordpress.com), onde meu anonimato está justificado. Qualquer comentário, feedback é mais que benvindo! De resto, parabéns por este texto, de onde roubei um excerto para colocar na página Facebook do Antologia de Ideias (devidamente referenciado!).

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  4. Caríssimo,

    Antes de mais agradecer-lhe o tempo que dispensou à leitura de tão entediantes e alongados posts e pelo facto de ter escrito estas palavras que, espero, poderão aproximar duas concorrentes que tendo aparentemente partido de pontos tão distantes, parecem caminhar a passos largos para a conquista de objectivo comum: a apologia da liberdade, uma liberdade não sindicada por grupos, ensinada por corporações ou gerida por guildas.

    Cada vez mais me convenço que o Marquês de Condorcet foi certeiro quando afirmou que «toda a sociedade que não é esclarecida por filósofos é enganada por charlatães». E não, nós não somos filósofos. Correcção: eu pelo menos não sou, mas sei quem são os charlatães, sei que eles sabem a verdade, sei que eles sabem que este estado de coisas e insustentável e que não irá sobreviver sobre estas areias movediças, sobre esta pampa pantanosa que eles tão bem conhecem. O orgulho, o ego e a vaidade são tudo o que os afasta da verdade, não a argumentação logicamente válida e os factos que se lhe apresentam.

    Aquilo que procuro fazer é trazer testemunhos de gente que via muito além do seu tempo, grandes pensadores que previram que o que não é sustentável não se sustentará, como afirma tão frequente certeiramente José Rodrigues dos Santos na sua «Mão do diabo».

    Caríssimo, temos a obrigação moral, derivada do imperativo categórico kantiniano, de fazer a nossa parte, de agirmos de tal forma que queiramos que o resultado da nossa acção se transforme em lei universal. Temos de nos queixar menos e fazer mais, temos de apontar menos e encaminhar mais, temos de pedir menos e dar o que tenhamos de melhor.

    No principio do fim do Império Português, em 1588, zarpou de Lisboa a Armada invencível, comandada pelo Duque de Medina-Sidónia, a quem o Rei Filipe II encomendou a tarefa de invadir a Inglaterra. Consta-se que o Duque terá perguntado ao monarca qual a estratégia a seguir, ao que este lhe terá respondido, ou convencido resolutamente que a providência o acompanhava ou embriagado pelo excesso de confiança, "Deus guiar-te-á", o que é uma óptima deixa para quem não tem estratégia alguma. Virão, como de costume, uns quantos apodar-nos de neoliberais, por cometermos o crime único de partilharmos e defendermos aquilo em que acreditamos. Eles, eles são como o Rei Filipe II: ou julgam que alguma reminiscência endeusada os guia e os ungiu para os fazer guiar a manada à qual pertencemos, ou se apaixonaram por si mesmos de tal forma que não achem justo não derramar sobre os seus pares pedaços, laivos da sua sapiência ou então seguem uma agenda ideológica própria no mesmo momento em que acusam livres pensadores do mesmo pecado que, do seu ponto de vista, apenas os outros cometem. Ora aí está uma óptima estratégia, digna de quem não tem nenhuma.

    Cordiais cumprimentos e até já,

    Alexandre Portugal

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