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quarta-feira, 2 de julho de 2014

Políticas Públicas e Vinho: o rótulo interessa, mas a substância é o que mais importa

A maioria de nós não duvida que a generalidade dos decisores públicos tenha a melhor das intenções quando propõe a adopção de um qualquer quadro legislativo, como terá poucas dúvidas que os mesmos terão a melhor das boas vontades no tocante à resolução do problema que a legislação a aprovar ou a decisão a tomar visa dar resposta. Ainda que alguns de nós tendam a pensar que o processo, aqui e ali, se verá inquinado por razões estranhas ao mérito das propostas e à própria virtude do entes que as propõem, ainda assim reitero a minha convicção que a generalidade das decisões políticas são, de facto, tomadas tentando acautelar o bem comum. Para os leitores que discordem desta posição, acto de resto perfeitamente legítimo, optemos então por convencionar, como frequentemente se faz nas ciências exactas para desfazer, ainda que artificialmente, um impasse; que de facto é assim, aceitemos como verdade que a regra radica na boa intenção do promotor legislativo e na sua vontade de prosseguir o interesse público.
Primeira pergunta: o que é o interesse público? Segunda questão: o que é o bem comum? Terceiro problema: que tipo de problemas resolve potencialmente a legislação? Quarta pergunta: quais as externalidades negativas que ela provavelmente provocará? Quinta indagação: qual o grau de preparação, de estudo, de conhecimento da matéria a legislar tinha o decisor? Sexta pergunta: seriam as premissas que estearam o processo dedutivo de tal forma válidas que permitam obter uma conclusão lógica também ela válida? Sétima dúvida: qual dos players no «jogo» tinha o maior estímulo para concorrer para a interpretação mais correcta da norma junto tribunais, o servidor público que foi mandado executar um postulado legal entretanto entrado em vigor ou um escritório de advogados disposto a pagar principescamente ao profissional liberal que conseguir sobrepor a sua interpretação à do primeiro? Oitava interrogação: não acreditando que as externalidades negativas se abatam sobre quem concebeu a lei em concreto, que tipo de estímulos teria ele para fazer um trabalho brilhante se no final do dia só ganharia uma dor de cabeça?

Todas estas questões, e muito mais exemplos poderiam ser aqui, e agora, aventados; são a prova que legislar pode muito bem partir de um processo abnegatório, de uma acção a todos os títulos meritória. Nem me atreverei a por isso em causa, porque sei ser essa a verdade na maioria dos casos. No entanto, o voluntarismo cego não interessa a ninguém, e interessa ainda menos quando os seus efeitos se destinam a ser por todos sentido. É pois verdade que, no final do dia, importarão muito menos as intenções que o aplicador da norma - o Estado, representado pelos que em seu nome agem - pretendia atingir e muito mais os efeitos produzidos por uma acção Estatal que, ao contrário daquelas levadas a cabo num local - o mercado - onde agentes livres e de forma não coerciva transaccionam bens e/ou serviços cujas consequências e/ou benefícios só a si implicam; é por todos sentida.

Milton Friedman sintetizou este insight, quando afirmou que não devemos julgar a garrafa pelo seu rótulo, mas sim pelo seu conteúdo (ver 05:25 m). De outro modo, relembro que já o Escolástico Espanhol Juan de Lugo se perguntava, 300 anos antes da grande obra de Max Weber «A ética protestante e o espírito do capitalismo» se alguma vez poderia haver em Economia processo algum que permitisse ao ser humano ter perfeita consciência de todas as variáveis envolvidas no mais pequeno processo decisório. Mais, Juan de Lugo afirma que a dificuldade em prever todas as consequências de qualquer intervenção no livre mercado são de tal maneira complexas, que apenas Deus poderia aspirar a conhecê-las. Assim, qualquer processo de tomada de decisões estará sempre votado a um possível fracasso, do que deduzo que quanto menos pessoas uma acção afectar, menos atacadas elas provavelmente serão e que essa propensão para o fiasco será tanto mais reduzida quanto maior o interesse dos agentes que nele tomem lugar. E sim, respondendo-vos, os escolásticos ibéricos católicos tardios forma capazes de formular as mais diversas teorias justificadoras do livre mercado e do espírito capitalista que hoje tendemos a atribuir aos protestantes do norte e centro da Europa. A este respeito ver o vídeo do Professor Huerta de Soto que resume sucintamente a natureza dos seus contributos e como ela, a Escola de Salamanca, antecipa «descobertas» atribuídas ao iluminismo escocês de Adam Smith. E não se esqueçam: o excesso de legislação afecta gravemente o equilíbrio que a mão invisível do mercado tão habilmente tem sabido trazer à humanidade, a que se deve juntar a imprecisão das variáveis insertas no modelo que viria a originar a peça legislativa entrada em vigor.



5 comentários:

  1. Alexandre,
    Acabo de conhecer este seu blogue e felicito-o pela intenção de problematizar aspectos centrais de filosofia política (e não só).
    Relativamente a este artigo, dirijo-lhe algumas observações:

    - logo a primeira frase do primeiro parágrafo - como consegue concluir que a "maioria de nós" acredita nas boas intenções dos decisores políticos? Assumindo que a discussão é feita a partir de uma tradição liberal (clássica) e libertária, este é um mau ponto de partida e não pode, julgo, ser assumido como resultando de um consenso nesta tradição; seja pela preocupação destas tradições em desenvolver argumentação e arquitecturas políticas que limitem ou "enfraqueçam" o impulso de quem exerce o poder, por um lado, ou a recusa absoluta de que os decisores políticos (ou a existência do estado) tenham qualquer legitimidade na sua acção; ou até pelas dificuldades na determinação de "um bem comum"...

    - considerando as questões que elencou no segundo parágrafo: com é que elas, e cito-o, - "optemos então por convencionar … um impasse"- convencionam um impasse? Julgo que algumas delas terão uma resposta muito semelhante no seio da tradição que temos aqui por referência (note-se o plural "temos"); logo, não penso que elas ilustrem um profundo dilema no sei dessa tradição; estarei a analisar bem?; um reparo que, julgo não ser de somenos: as premissas de uma raciocínio não podem ser válidas (ou inválidas), apenas podem ser verdadeiras ou falsas (o mesmo para a conclusão); os argumentos/raciocínios/inferências, sim podem ser válidos ou inválidos; as duas últimas perguntas parecem-me ser perguntas dirigidas a quem defende "as boas intenções dos decisores políticos", a quem defende a legitimidade do exercício do poder do estado (e dos seus agentes) na promoção do bem comum; não me parece que a resposta a estas duas últimas seja, por si, clarificador no seio da própria tradição liberal ou libertária.

    - importa não esquecer, ainda assim, que há o problema de discernir na tradição (e deturpação) liberal pelo menos mais uma tensão ética entre utilitarismo e deontologia;

    - por fim, excelente o vídeo que seleccionou; de perder o fôlego para acompanhar o estimulante professor.

    Saudações,
    LV

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  2. 1 de 2 – Cometário dividido

    Caro LV,

    Antes de mais obrigado pelo seu contributo. Creio ser desta forma que no contexto extra-académico, local por excelência onde este tipo de discussões têm lugar, se possam também manter discussões que aproveitem aos que, como eu, nutrem especial interesse pela temática em análise.
    Passando ao conteúdo da sua análise crítica propriamente dita, tenho a dizer o seguinte:
    - O post em apreço, embora não o diga abertamente, nada mais é - para ser preciso, deveria dizer «nada mais pretende ser» - que uma análise pessoal à própria perspetiva pessoal de Milton Friedman sobre o processo de tomada de decisões políticas e de formulação de políticas públicas. Com efeito, é evidente pela leitura do seu livro mais conhecido pelas massas não especializadas em Economia e Economia Política, «Free to choose», que o autor conserva uma perspetiva benigna sobre a vontade de quem toma decisões com implicações no tecido colectivo e de quem concebe políticas públicas. Ele dúvida é quem tome decisões tenha capacidade de prever que as consequências práticas dessas decisões. Isso é particularmente visível nos vários vídeos da série composta por 10 episódios «Free to choose» - que originariam o livro homónimo -, e nas discussões abertas à sociedade civil com que terminavam. Note-se que essa sua perspetiva foi sendo formada num tempo e a Escolha Pública, e a sua «politics without romance», não tinha ainda a solenidade e as bases teóricas sólidas que hoje a sustentam. Talvez pudesse ter sido mais precavida na minha análise, mas considerar que toda a gente vai para a política para ser desonesto é diferente de achar que não há razões para crer que nesse percurso, para além do putativa prossecução do interesse público, os agente políticos não prossigam também o seus próprios objectivos pessoais ou corporativos.
    - Na minha opinião, a grande capital da corrente Liberal Clássica e Libertária é não ter uma corrente que se possa considerar única, unívoca. Pese embora tenham pontes com pilares firmes que unem mais essas correntes que as separam, resulta para mim evidente que os mundos liberais são ilhas, todas elas semelhante na sua formulação geológica, nas suas características estruturais, mas com floras e faunas distintas que as tornam singulares. A riqueza destas correntes radica precisamente na sua diversidade. Afinal, como poderia um Liberal, um tipo de pessoa que habituou os outros a ouvi-lo falar de um certo nível de desregulamentação e de desregulação, a conceitos como «ordem espontânea» e «mão invisível», vir agora, como outros movimentos de uma outra ala que se acostumou a decretar em plenário o que é socialista e não é, tentar fazer idêntico exercício? Afinal, qual a linha mestra seguida em raciocínios tão diversos como aqueles encontráveis no iluminismo escocês de Adam Smith, Adam Ferguson e David Hume e da sua vertente mais austríaca corporizada por Mises, Hayek e Menger que já eram e são, entre si, e apesar de tudo, tão diferentes? E em que linha mestra dessa tal tradição liberal, se rigidamente considerada, se incluem os integrantes das Escolas de Chicago e da Public Choice? Se é verdade que o substrato de onde brotam é o mesmo, é também lógico concluir que sendo o centro de gravidade da análise, do objecto de cada uma delas, dessas tradições e Escolas, diferente, seja de esperar que o resultado final da sua interpretação liberal seja, também ele diferente no seu epílogo, pese embora o introito seja o mesmo.

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  3. 2 de 2 – Cometário dividido
    - Caro LV, em momento algum convencionei um impasse. Isso seria, no mínimo, imprudente e conduziria rápida e necessariamente a que toda a estrutura lógica em que assentava essa reflexão ruísse por falta de coesão argumentativa. O que eu disse foi que acreditava que não houvesse razões para crer, na tradição Friedmiana, que os decisores políticos não tentassem prosseguir o interesse público e que, para os que não acreditavam que isso fosse assim, e porque precisávamos desse acordo para desenvolver a base conceptual seguinte, então poderíamos optar por convencionar que assim realmente era. Pese embora possa parecer uma solução ortodoxa, a verdade é que não poderia ficar preso num caminho sem saída. E sim, tenho noção de que tendo seguido este caminho me atrevi a juntar no mesmo exercício premissas verdadeiras e premissas de cuja verdade desconfiava, pelo que estava disposto a correr o risco de a conclusão se ver ferida, no seu conjunto, da integridade que me permitiria considerá-la válida no seu conjunto. Na vida é preferível assumir o risco e avançar, aceitando para tanto a possibilidade de a conclusão poder ser fatalmente atacada, a ficar preso num pântano do qual não saíria. Não é isso o que agora vimos chamando de empreendedorismo e gestão de risco?
    - Desejo manter acesa a discussão sobre estes e outro temas, nomeadamente na filosofia política, mas também na filosofia moral, campo que descobri recentemente e sobre o qual me tenho vindo a interessar.
    Obrigado pelo seu contributo.

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  4. Alexandre,
    A sintonia quanto a criar espaços fora da academia (acrescentaria fora do mainstream comunicacional) é total. Se a intenção corre os riscos da dispersão, sempre é preferível ao, se me permite a expressão, pensamento de rebanho.

    Relativamente a ambos os comentários que me endereçou digo-lhe o seguinte:
    - não obstante a diferença e a riqueza da tradição liberal (assinalada por mim e por si reafirmada), julgo errada a inclusão de Friedman (e a sua escola monetarista) na tradição original da Liberdade; pela simples razão que a admissão que a moeda deva ser criada por uma entidade central (estado) para optimizar as dinâmicas de mercado é já ferida de legitimidade moral; se aproximarmos o respeito pelos direitos naturais desta possibilidade (controlo da moeda) verificamos que ela exige uma entidade que monopoliza um ingrediente fundamental da vivência cooperativa dos indivíduos, deturpando os sinais vitais da sua optimização; por isso, uma limitação da sua liberdade - inaceitável conclusão para um verdadeiro liberal (note-se o reforço de verdadeiro) ou libertário; por muito que o conceito de "livre escolha" seja associado a Friedman, diria que terá ficado a meio caminho na defesa da Liberdade.
    - o abastardamento da palavra liberal tem muito que se lhe diga e, julgo, está relacionado, precisamente, com a definição das regras económicas dos últimos dois séculos, bem como das consequências sociais e políticas, do espaço "liberal" (notem-se as aspas).
    Saudações,
    LV

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  5. Caro LV,

    Não foi há tanto tempo assim que me comecei a interessar pelos temas de economia política, embora deva dizer que a filosofia política sempre me seduziu. Tenho até dificuldade em separá-las porque as entendo como complementares e inseparáveis.

    Quanto ao controlo e emissão de moeda pelo Órgão que mantém o monopólio legal do uso da força, não tenho ainda assim um tão grande lastro que me permita perceber sobre se existem ou não alternativas viáveis que permitam substituir o papel que o Estado vem ocupando nesse domínio. No campo filosófico, a discussão deverá ser bem menos complicada, mas no campo prático não é fácil desenhar uma arquitectura que permita que o sistemas seja simultaneamente estável e sustentável. O ordoliberalismo Alemão tem sabido manter esses equilíbrios, até porque a experiência hiperinflaccionária dos anos 20 lhe ensinou uma lição que nunca esqueceram - graças a Deus, e a eles! -. Mas eles são a prova que mesmo com a oferta de moeda a ser controlada pelo governo, mesmo não tendo um padrão-ouro - tema que sei ser-lhe caro - que permita equilibrar a massa monetária com a quantidade de ouro em reserva, mesmo assim não vão em cantigas de aumentar o dinheiro em circulação para, como costumamos ouvir dizer, «estimular a economia». Como se a economia se estimulasse por decerto e o processo se visse incrementado por vontades.

    Cordiais cumprimentos,

    Alexandre Portugal

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